Desde o sempre e depois ela rasteja silenciosamente por baixo da aldeia. Do fundo da terra, nas raízes e no escuro, entre cheias e secas, um dia ouviu cantos de muitos povos, ouviu risadas, ouviu crianças brincando, ouviu tudo e ficou curiosa, foi ver.
Veio de um mundo onde vegetais cantam, o mundo das batatas Krahô. Veio de uma vasta Terra sem Males, onde tudo que é vivo pode co-existir, terra que os Guarani procuram e encontram diariamente na casa de reza. Veio de uma terra que sonha, de lá onde nascem, toda noite, os cantos Xavante. Veio do rio profundo que alimenta a voz dos Fulni-ô e Kariri-Xocó, do mundo onde dançam os mortos durante a festa do Kuarup no Xingu, de lá onde dançam linhas e cores para enfeitar a vida dos Huni Kuin e Noki Koi, e perpassa os rios e vãos onde habita o bicho-fera de memória quilombola Kalunga...
Saiu de lá passando pelo buraco que um dia foi aberto pelo grande tatu ancestral, buraco que liga a vida de baixo e a de cima no mundo Kaiapó. A cobra coloca sua grande cabeça para fora, rasteja silenciosamente pela aldeia, mira admira e vê. No meio de tanta gente em festa, metamorfoseia-se, troca de pele. Convida toda gente a cantar e a grafar sua nova aparência.
Pelas mãos do artista, da cal da terra sobre o vermelho do barro, renasce ali na forma de duas linhas brancas. As mulheres são as primeiras a ver e a aceitar o convite da cobra. Ficaram ali junto dela por um dia inteiro fazendo-a aparecer com mais força. A serpente fez assim sua reluzente chegança na aldeia e apareceu a todos em presença. Os jovens, aqueles que estão também trocando de pele, foram chamados por ela para conduzir a sua festa de transformação. Cada um ofereceu algo de si: uma história, um canto, uma dúvida, um traço... A cobra desafiou a todos a fazer coisas inesperadas e ainda não realizadas: transformar um canto em desenho, encenar uma história em filme, misturar o canto de um povo com outro. Muito rapidamente saiu todo mundo a fazer coisas que não sabiam ainda. Um povo foi convidado a se abrir ao canto de outro povo, ao traço do outro, a história do outro e tudo foi se misturando: jenipapo, máquina fotográfica, canto, mesa de som, gravador, cal, carvão, microfone, filmadora, canto, rabeca, grafismo, fotografia, palavras, batatas, maraca, ritual, cocar, fogo, cola, fumaça, impressora, gentes... A cobra ficou feliz por receber na sua pele tanta mistura e criação. Sua nova aparição tinha filme, tinha banda de música, tinha grafismo, tinha lambe, tinha canto, tinha a imagem de pajés, de nhandcys, de hotxuás, de lideranças indígenas que partiram na luta. Tinha alegria e tristeza, luta e celebração, encontro e línguas, terra e traços, canto e dança, sons e palavras e mais tudo aquilo que não se viu, nem ouviu. A cobra, mestra do movimento, ficou ali sentindo tudo no seu grande corpo. Decidiu não voltar para o fundo da terra, aninhou-se no grande muro da aldeia. Na manhã fria depois da festa da transformação, a cobra tinha um olhar que era, ao mesmo tempo, triste e alegre. Olhava admirada para aquele povo todo que voltava para suas casas. Desde sua nova toca, viu partirem de lá muita gente alegre e todas, como ela, admiradas com sua nova pele tracejada de pura vida.